segunda-feira, 27 de abril de 2015

Crônicas do Cavaleiro Errante - O Contador de Histórias

Nas longas viagens - daquelas em que se perde as contas das vezes em que o sol se pôs ou a quantidade de fogueiras que já se acendeu - nem sempre o caminho mais rápido é o mais viável. Todo viajante que se preza necessita conhecer um certo número de "locais comuns" e de preferência amigáveis, de modo a tornar a travessia mais segura.

Um desses locais-comuns-amigáveis era a taverna Raposa de Ouro, no vilarejo de Sigtorn da província de Bel-Sür. Hoje o que se vê lá são ruínas, mas no tempo de seu funcionamento era uma taverna respeitável. O vinho e a música não eram dos melhores, mas sempre tinham o calor de uma lareira e um pedaço de faisão a oferecer aos que lá procuravam abrigo. Dona de uma certa fama, em grande parte pela presença de um ilustre hóspede que lá se instalou por tempo indeterminado, Berin Muitas-Vidas, um senhor de poucas palavras e muitas histórias, o que a princípio pode parecer confuso e contraditório.


Berin em seus melhores anos foi um famoso bardo, requisitado nas mais diversas cerimônias e festejos da alta corte. Sua capacidade de decorar livros inteiros e contá-los de maneira surpreendentemente instigante o tornaram figura essencial em qualquer evento e lhe rendeu o apelido "Muitas-Vidas". Não era do tipo de longas conversas, dizia preferir guardar suas palavras para suas narrativas, de modo que não era muito fácil conhecê-lo intimamente.

Uma noite, entretanto, abandonou a capital sem dizer nada a ninguém e nunca mais foi visto nos salões da realeza. Mesmo sua chegada e os motivos que envolvem sua inesperada permanência em Sigtorn eram um mistério. Alguns diziam que o velho Berin havia cansado-se dos banquetes reais, outros que estava em busca de novas histórias para decorar, e ainda haviam os que comentavam a voz baixa que o bardo havia enlouquecido e não conseguia mais discernir as histórias que contava da realidade ao seu redor.

Boatos a parte, todas as noites Berin sentava-se a mesa da taverna e contava uma de suas histórias ao sortudos viajantes que por ali passassem. Uma dessas noite porém, mudaria por completo a vida daquele vilarejo. 

Como de costume, o velho Berin dirigiu-se a sua mesa perto da fogueira e pediu um copo de vinho. Imediatamente todas as atenções se voltaram ao velho magro de olhos perdidos que se preparava para começar mais uma de suas aventuras. Um detalhe, porém, perceptível apenas aos mais atentos levava a crer que aquela não seria uma noite igual as outras. Berin trazia consigo um livro, negro como a noite cujo título escrito em um idioma desconhecido parecia dançar em sua capa como chamas ardentes de um fogo celestial.

Lentamente, levantou seu copo e deu um longo gole deixando apenas metade do vinho, respirou profundamente e repousou em sua mesa o livro misterioso, abrindo-o cuidadosamente. O silêncio dos ouvintes era quase palpável e até a respiração parecia estar sendo controlada para não atrapalhar o que estava por vir.

- O que é a vida, se não a mais importante história que cada um traz consigo? - Começou Berin, pausadamente - ... e como toda a história deve ser escrita de maneira que se valha a pena ler.

Enquanto Berin introduzia a história da noite, a taverna adquiria um ar quase etéreo, como se a fantasia se fizesse presente a fim de auxiliar o velho bardo em sua leitura.

- Hoje darei a vocês uma história que fará suas vidas valerem alguma coisa... Hoje vocês serão mais do que apenas ouvintes, serão parte de algo maior, escrito a centenas de anos...

Aos poucos, a chama das velas pareceram enfraquecer-se, como se o tom das palavras as amedrontassem de tal maneira que abdicassem de iluminar o que acontecia. Todos os ali presentes estavam com o olhar fixo no narrador que enfeitiçava a todos com sua voz envolvente.

O restante do que aconteceu vagará para sempre no desconhecido, pois subitamente, uma luz cegante preencheu o local e de igual modo extinguiu-se, deixando para trás apenas silêncio.

Ao fechar o misterioso livro negro, o outrora velho bardo levantou-se altivo, em sua juventude e vivacidade. Nenhum traço do passar dos anos era visível em sua fisionomia, que demonstrava uma tranquilidade sepulcral ante os corpos cadavéricos ali presentes.

De mesa em mesa, a imagem que se formava sobre o que restou daquela pequena platéia voltava a realidade, como no levantar das cortinas anunciando o final do espetáculo, apresentando corpos sem vida, enrugados, ocos, imóveis como parte dos objetos que compunham a mobília do casebre.

Berin, terminou seu copo de vinho e guardou o livro em sua sacola. As histórias que adquirira seriam suficientes para mantê-lo vivo por algumas décadas. Apesar de considerá-las, em sua grande maioria contos pobres e sem perspectiva, viveriam para sempre como páginas secundárias de uma história muito maior...

Zaat abaixou a cabeça, os olhos em direção ao seu copo de vinho já vazio, o público ao seu redor ainda em transe, como se aguardando um desfecho menos sombrio.

- Você não pode terminar a história desse jeito, rapaz! - gritou o mercenário barbudo, já ligeiramente embriagado na mesa ao fundo.

Ignorando-o completamente, o narrador levantou de sua mesa, arremessou algumas moedas ao taverneiro e caminhou em direção a porta. Mantendo o ar sombrio em que terminou a história despediu-se com um leve aceno de cabeça.

Como filho de taverneiro, Zaat sabia inúmeras histórias, aprendidas na época em que ajudava o pai nos negócios. Alguns contos podiam ser modificados e até melhorados, mas a história real, essa devia ser contada em todos os seus detalhes, para jamais ser esquecida. Essa foi a lição que aprendeu com um velho bardo contador de histórias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário